quinta-feira, 19 de março de 2015

"Néctar de mil flores, cada uma tão pequena que passam despercebidas no chão. Cera de abelhas, algumas gotas de leite de égua baia, macela tostada e uma tira de couro de urso. Eis a única receita que conheço dentre todas aquelas que mestre Varyn utiliza para suas poções, bálsamos e recursos. Estavam listados esses ingredientes nas páginas amarelas sobre uma mesa onde meu mestre também deixara as cartas negras de um baralho de adivinhação, alguns cristais pesados, mapas das linhas das mãos de alguns reis cujos nomes desconheço a pronúncia e uma série de papéis e pós que não ousei ler.

Meu mestre jamais passou-me o segredo de poções, infusões, ou qualquer coisa que saiba fazer ferver em crisóis e alterar a natureza das coisas. Mas se não o fez, foi porque nunca precisarei. Meu mestre conhece-me melhor do que eu mesmo. Ele ensinou-me forja, e o trabalho com engrenagens e muito sobre as estrelas. E treina-me todo dia - Não passou-se um dia sem que ele me faça mostrar destreza com a espada, com o machado, com o chuço ou com a maça desde que tomou-me pela mão e levou-me embora como seu pupilo, ao terminar de me ajudar a sepultar meus pais e os demais corpos daqueles que um dia foram meus vizinhos na aldeia, que queimara.

Havia naquela mesa, naquele dia, entre seus instrumentos de adivinhação e livros com receitas, um copo já vazio, uma fatia de pão e uma faca velha enterrada em um pedaço de queijo. Discrepantes, sem nada de oculto ou misterioso, eram coisa vulgar ali deixada. Não sei se a mesa era mais deles, que normalmente a habitavam, ou se a mesa era mais daqueles apetrechos de adivinhação e poder. E tal como ali, no tampo, objetos de duas naturezas distintas - o vulgar e o misterioso - partilhavam o plano da mesa, eu fui sempre distinto do mestre Varyn. Por anos pensei-o como o ferreiro, o mestre artesão, e eu era o aprendiz que o ajudava na forjadura. Fez-me ver, contudo, e com grande esforço, que eu é que devia manejar a forja. Ele estava ali para me ajudar a forjar para mim mesmo garras tão fortes quanto a moral e uma armadura mais forte e imaculada que o aço.

Nunca serei que nem ele. Mostra-me isso sempre, e desde sempre. Mas ensinou-me a ser algo mais, melhor do que se eu tivesse tentado ser-lhe igual."

- Azandre, Diário.

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"Azandre, como de hábito, veio até mim censurando-se. Certa culpa teimosa, ainda que de certa clareza, vinha estampada na vazão de seu olhar. Contou-me de como viu - "bisbilhotou", segundo ele - alguns papéis em minha mesa certa noite. Veio mostrar-me seu diário, apresentado-me um registro confessando o que viu, e suas considerações acerca do fato. Sugeriu-me que eu destruísse o relato caso assim eu julgasse necessário - ou, como ele acrescentou, "seguro", caso a receita descrita pudesse servir de pista a inimigos e incautos. Expliquei-lhe que velas de urso são meros instrumentos de iluminação de altar. Foram inventadas em Calastra, onde os ursos e os homens caminham juntos, e acreditam por lá que elas têm poderes de acalmar feras e homens.

Mandei-o comprar tinta, alegando o fim de meu suprimento, quando na verdade escrevo estas linhas sem ter de recorrer a tintas fabricadas por mãos de leigos. A pena corta no vazio do papel e não sangra o pigmento negro, mas imprime meu pensamento direto no papel.

Azandre tem um coração revestido em aço, mas seria o mais pleno e feliz dos homens se o mundo fosse um lugar de paz. Desconheceria a guerra - e é bom na guerra - mas seria feliz. Quase toda sorte de homem seria feliz na paz, mas não como Azandre. Meu pupilo mais fiel e humilde é o que mais sofre nessa época de guerras, de ignorância e de ocasos da razão. Ele foi feito para ser feliz, para ser pleno. O útero de sua mãe assim o preparou. Desde o parto, contudo, falta-lhe e faltar-lhe-á para sempre a plenitude que seria sua herança, e que tão presto parece-lhe direito nato. Ele viverá na guerra e na guerra será um grande senhor. Mas não vejo no fim dos dias dele a promessa de tempos de paz, onde sua mão calejada pela espada afagará seus próprios filhos sem jamais ter de tocar o aço afiado outra vez.

Mas o futuro é incerto. O coração dos homens é incerto. As palavras são incertas. A única certeza é a mudança. Na minha mesa eu dispus, naquela noite em que Azandre pensou ter visto segredos importantes, apetrechos de agoureiro, de Mudador. Eu estou ficando velho. Percebo-o quando me alarmam as notícias de mais guerra e de mais dor, de ignorância e de soberba. Percebo-o quando sinto o frio dos invernos penetrar cada vez mais dentro de minha carne, ignorando minha pele e zombando da rigidez de meus ossos. Percebo-o quando os meus pelos cada vez mais gastam o fim do negro. Percebo-o quando tento olhar dentro dos cristais e no tarô que desenhei prenúncios de futuros melhores, de vidas em paz, de momentos de iluminação. Mas teima, em minha mente, aquele assomo que na juventude cega-nos e faz-nos surdos aos imperativos da mudança e seus preços a serem pagos com exagerada margem. E logo transformo os agouros que peguei do futuro virgem em sinais claros, em fatos quase que cabais, em caminhos já prontos para a trilha. Faço-me ocupado, sempre. Sempre tendo que estar em muitos lugares, sempre tendo de fazer muitas coisas, sempre com pouco tempo. Quando, na verdade, tudo o que tenho é tempo. Mas o tempo também há de acabar.

Quando meus ossos repousarem na terra - porque espero que repousem na terra, e que eu seja esquecido para sempre - Ficarão meus pupilos. Não direi jamais que espero que até lá estejam prontos para terminar de trilhar os caminhos que percorreram comigo. E não o direi jamais porque ao invés de esperar, garantirei que possam cumprir suas sinas. São filhos em meu pensamento, e irmãos, e são meus pais, e meus amigos, e súditos que me servem, e reis a quem sirvo. Um dia fecharei meus olhos uma última vez, e o silêncio é que matará minha mente. Calar-me ei todo, e tudo em mim será inerte, silêncio, estanque, irremediável. Mas ainda haverá mudança, e ainda que eu apodreça sob o céu, insepulto, serei eu mesmo agouro.

Todas as coisas que são mudam. Todas as coisas mudam, mesmo sem ser. O futuro muda. O tempo, que quando temos por certo é porque é curto, é inexorável em sua natureza fugaz, traiçoeira e fugidia. Meus pupilos sobreviverão ao dia que trará meu fim. Mas até que meu dia final chegue, eles conhecerão de mim cada segredo que Deuses e homens inscreveram nas tábuas de pedra onde repousam as montanhas e as águas do mundo."

- Varyn, Diário

quarta-feira, 11 de março de 2015

"É da vaidade dos homens não querer morrer afinal. A história é o hospital de campanha onde deixam-se ficar aqueles que lutaram pelo apreço ou temor da memória alheia. Com o tempo, contudo, vão-se tais emoções. A lembrança passa a ser a meia-vida do morto ainda não esquecido, como o parente que há tanto já convalesce a ponto de não mais parecer necessário visitar-lhe o leito.

Mas a virtude está na vida que, no presente, não prepara-se para perdurar no futuro, e sim manter constante a certeza de que os vivos servem aos vivos: É da virtude dos homens querer que aqueles que os sucedem na trilha das terras e na lida com o tempo os superem; que os herdeiros do destino e do presente possam garantir em vida que o nome dos homens do passado repousa em paz nas crônicas, tal como possam os ossos deles descansarem em paz."

- Varyn, "Meditações", volume III

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Sobre "As Rosas e o Punhal"

Aventuro-me em reinos que nem sei, e escrevo sobre gente e terra de tão longe que meu pensamento ocasional é o que os faz mais perto.

Entre as escritas demoradas de outros projetos e as estórias rápidas surgiu a partir de uma música e o vídeo a ela atrelado uma nova estória.

E se a amada estivesse louca?
E se a amada fosse maldita?
E se os amantes é que estivessem amaldiçoados?
E se os malditos não fossem a pior gente do mundo?

E um casal problemático já estava afastado por guerras, por neve e por intrigas, e enquanto um está longe do outro, a condição dele, na alma, piora; e a doença dela, na mente, se agrava.

E se ao se reencontrarem não se reconhecerem? E se ao se encontrarem se odiarem, se enojarem?

Entremeios sinto também que não devo narrar nada. Outro é que contaria a história por mim, que deles pouco entenderia. Ocorreu-me deixar que outros contassem, mas ao fim um único narrador elegeu-se em meu pensamento.

E ele é perspicaz, muito mais detalhista que minha mente narradora. Ele escreve como quem ama de maneira irresistível, ou como quem trabalha de maneira perfeccionista, ou como quem mata de maneira inescapável. Não é conciso, que com gente concisa acabo por não me dar nos assuntos de narrar, mas é certeiro.

Quando mais tarde eu falar de Varyn, mais entenderei seu papel de narrador. Eu admiro-me com a história dele, que conheço somente à medida que ele conta a história de Elão de Varraquez e a Dama no Castelo da Quartalonge. Tal como eu ele enoja-se com o sangue e a perversão que envolvem o casal em todos os seus assuntos, mas Varyn e eu nos identificamos também no espanto e na admiração que temos diante do fato dos dois encarnarem o papel devotado e inexplicável da perseverança, ainda que sinistra, contra todas as adversidades.